Pensamentos Vividos

domingo, maio 20, 2007

O Passado e o Futuro

Dois homens sentaram-se à mesa de um café para discutir a existência. Um chamava-se Passado, outro chamava-se Futuro. Passado vivia num casarão decorado com antiguidades e velharias, tinha na garagem um citroën boca de sapo que já não funcionava e costumava dar longos passeios com um cãozinho embalsamado, a cujas patas adaptara rolamentos, que fora seu companheiro durante quase vinte anos. Futuro vivia numa casa vazia, de paredes brancas e vidros impecavelmente limpos, e ocupava o tempo a imaginar como seriam esplêndidos os móveis ainda não inventados que um dia iriam rechear a sua sala, como seria extraordinário o carro ainda não desenhado que um dia iria ter na sua garagem, como seria deslumbrante a mulher ainda não nascida que um dia iria pôr fim à solidão expectante do seu viver.

Quando o empregado se aproximou a querer saber o que desejavam tomar, Passado e Futuro estavam profundamente envolvidos nas suas divagações filosóficas.

Dizia o senhor Passado

- O que podemos ser senão aquilo que fomos? Eu cheguei a coronel do exército e a minha glória é essa ser ainda hoje o coronel que fui. Nada pode existir fora da memória.

Dizia o senhor Futuro

- O que podemos ser senão aquilo que seremos? Eu cheguei a banqueiro no meu sonho e a minha glória é essa ser já hoje o banqueiro que serei. Nada pode existir fora do desejo.

Tossicando ao de leve, o empregado interrompeu-os

- Em que posso ser-vos útil?

Disse o senhor Passado

- Eu tomava um café de saco. Ainda servem café de saco?

- Café de saco não servimos - disse o empregado, com um sorriso -, mas temos uma boa selecção de cafés solúveis.

- Ah, não - resmungou o senhor Passado.

Disse o senhor Futuro

- A mim apetecia-me um café, mas um café especial, talvez com sabor a maçã da Índia.

- Lamento desiludi-lo - disse o empregado -, mas com sabores só temos água e cerveja. Se quiser, posso juntar ao café um cheirinho de um licor à sua escolha...

- Ah, não - resmungou o senhor Futuro.

Os rostos do senhor Passado e do senhor Futuro cobriram-se de desgosto. A não realização dos seus desejos esfriara-lhes a vontade de dissertar sobre a existência.

- Hoje em dia, não há nada que me satisfaça - murmurou o senhor Passado.

- Nisso tens razão - concordou o senhor Futuro. - Não há nada que corresponda às minhas expectativas.

E partiram cada um para o seu lado. O senhor Passado rumo a um casarão cheio de coisas mortas, o senhor Futuro em direcção a uma casa cheia de coisa nenhuma.


Fernando Marques , Jornalista

1 Comments:

  • Peço desculpa pela invasão, mas não poderia deixar de comentar este texto. É simplesmente fenomenal. É engraçado como, no meio de tanta longevidade entre passado e futuro, ambos conseguem ter duas coisas em comum - o nada e o tudo. Mas parece-me que, tanto o nada como o tudo, apenas farão sentido se entrar para a "conversa de café" mais um participante - o presente! Tudo o que somos e até o que não somos está inscrito - em tempo real - tanto no passado como no futuro. Na minha perspectiva, claro! :) Obrigada pelo espaço.
    ss

    By Blogger Ms.Oak, at 5:10 da tarde  

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